Modos de dizer as coisas

Wanderlino Arruda

Coisa gostosa de ler é um relatório de fiscal de banco, é uma ata de secretário de associação de bairro, um bilhete com recado dado a secretária doméstica, uma notificação fiscal de um desses guardinhas da vida. Que linguagem atraente, deliciosa, cheia de expressões que, se bem alinhadas, enriqueceriam a língua muito mais do que fazem os compêndios meramente de gramática. Houve, por exemplo, um guarda da antiga Algodoeira Luiz de Paula, acredito invenção do Luiz, que escreveu as páginas mais gozadas da nossa inventiva municipal. Passava as noites vigiando tudo o que acontecia, bêbedos que passavam, namorados que namoravam apertado, suspeitos que provocavam suspeitas, gente séria que parava na beira dos muros para tirar água do joelho, mulheres cautelosas que levantavam as saias para consertar as meias, crianças que brincavam de esconder, tudo era matéria para a sua redação que tinha de entregar de manhã cedinho no gabinete do chefe. Uma enorme riqueza de repertório!
Como deveriam ser interessantes uma ata de reunião de partido político atual, uma ata de tudo que se fala numa câmara ou numa antecâmara municipal, um discurso ideológico de sindicalista que tenha virado patrão, ou mesmo algumas petições que circulam pelos nossos cartórios! Nunca me esqueço de um artigo que um adversário do Valdyr Senna escreveu contra ele, há uns anos, sem um único verbo e quase só de adjetivos, que em vez de xinga-lo, acabou elogiando-o e elevando-o às alturas do jornalismo de vanguarda. Não posso me conter de achar graça quando leio algumas entrevistas encomendadas de políticos que falam os maiores aburdos, muitas vezes uma verdadeira autocondenação.
Por exemplo, numa entrevista do presidente da Câmara: “A Câmara de antigamente era mais corrupta que a de hoje”. E sobre o mesmo assunto, isto é, a venda de artigos de metalon para a Prefeitura, dito pelo outro lado do negócio: “Não vejo aí nenhuma responsabilidade jurídica, nenhum comprometimento. O único problema é o moral”. Tudo tão claro que nem precisa de comentário.
Mas saborosos mesmo são os relatórios dos fiscais de bancos, uma autêntica preciosidade do besteirol fora dos teatros. Ao longo dos anos, conversando e lendo, um bom registro desses feitos foi concentrado de forma que posso agora entregar a quem me lê. Veja as valiosas riquezas semânticas do modo de falar interiorano, ingênuo, que o fiscal acaba plasmando na própria alma. Falando de irresponsabilidade de um devedor. “Está havendo uma troca de fazendas e dano prejuízo ao banco, com títulos protestados e tudo, e ele nem liga”. Comentando sobre uma máquina financiada: “O trator está todo sujo e quebrado, valendo Cz$900.000,00. Se fizer um conserto em firma especializada e dando óleo nele, pode valer uns setecentos”. Sobre penhores: As garantias permanecem em perfeito estado de abandono e conservação. O mutuário mantém vida privada na fazenda. Sobre clima: “O sol castigou o mandiocal. Se não fosse esse gigante astro, as safras seriam de acordo com as chuvas que não vieram”. Em problemas pessoais: “O devedor, triste e solitário pelo abandono da mulher, não pode produzir nada. Está vendendo em barraca emprestada, de dia, e, de noite, fazendo coisa boba”.
Sobre execução de tarefas contratuais: “O financiado executou o trabalho braçalmente e animalmente”. E mais: “Achei uma coisa horrível o serviço. Tudo realizado ruim. Cliente vive devidamente bêbado e devendo aos bares e a Deus e ao mundo”. Também outra: “A casa de farinha não foi para a frente porque o mutuário deu para trás e nunca mais se levantou”. “Fui atendido na fazenda pela mulher do devedor. Segundo soube, ninguém quer compra-la, e sim explora-la”. “Se não fosse o sol, tudo indicava que a chuva aumentasse a safra. Outra preciosidade: “Vistoriei um cavalo moderno, pêlo de rato, que se encontrava trabalhando para o mutuário”. “O cavalo estava ajudando nos serviços da fazenda. Ele liquidara o financiamento com a mandioca particular que está sendo carregada para casa do vizinho”. “O devedor morreu no mês passado, mas a viúva continua com o negócio em atividade”.
E para encerrar, uma de Montes Claros, de companheiro daqui mesmo: “Visitei ontem a fazenda de Dona Maria de Lourdes, que continua viçosa e florida”. Precisa mais?